sábado, 6 de abril de 2013

A dimensão do amor






Esta noite não me abraces apenas porque estou próxima
Estar próxima pode ser o fundamento do amor verdadeiro
Pois a proximidade é sempre a escolha.
Porém o amor verdadeiro tem mais do que apenas isso.
Tem pétalas bordadas na dobra do lençol
Mas também no vestido que se pôs logo pela manhã
Ou nos brincos pendentes sob a franja penteada
Ou no abraço apertado ao meio dia.
O amor diz-se nas palavras de um poema
Mas também num olhar redondo
Ou num silêncio partilhado à beira rio
Ou num beijo saboreado de olhos fechados
Depois de uma mão macia, rolando levezinha sobre a face.
Pode até ter no fundo o vermelho das papoilas
Em vez das orquídeas douradas.
Esta noite podes abraçar-me apenas
E dormir em paz
Porque depois da noite vem o dia e o amor precisa de sol.



segunda-feira, 25 de março de 2013

Frio



A terra prometeu que dela ressurgiria a vida quando chegassem os raios de sol.
Vi romper do verde as corolas das papoilas, cujo vermelho me flagelou
Habituada que estava à violência do negro com que o Inverno me cobrira.

Chegaram, promissores, os raios de sol, mas breves, curtos, frios ainda.
E eu, que me gastei na espera, antevendo o calor necessário ao ressurgir
Gelei mais uma vez, e outra, e outra
Sob o olhar fugitivo da prometida entrega...


quinta-feira, 7 de março de 2013

o gelo












Modificações, mudanças, promessas, cinco tostões de ódios já digeridos e outras coisas sem valor amontoadas a um canto, histórias que nunca mais se repetirão, as melhores e as outras, e a vontade a acender-se contra as rugas das paredes; ásperas também as recordações e os desejos, esses menos porque toda a tempestade amaina, tarde ou cedo; e as vidas a resolverem-se, nem bem nem mal que o bem-estar alheio só o é para os olhos menos avisados; tomara ter a menos o peso do lastro que fica fechado entre muros ou ser herdeira de portas encerradas e estar para lá das fechaduras, sem esta demora nas soluções ou esta vontade miudinha de desistir, que a vida não pode adiar-se nem fechar-se entre o sol filtrado e o gelo que se instala quando cai a noite.



segunda-feira, 4 de março de 2013

sentada com pétalas no regaço








Vem ter comigo ao fim do dia, todos os dias
Esperar-te-ei sentada
E no regaço terei pétalas de lírios
Para te lembrar que plantei amor no jardim.

Vem ter comigo ao fim do dia
Estarei à tua espera, de olhos postos num caminho a dois
E, de pálpebras cerradas, aguardarei o beijo
Que há-de serenar a angústia do olhar
Quando te penso longe e tenho frio.

Vem ter comigo ao fim do dia, todos os dias
E alisa as pregas do meu desassossego
Com a ternura dos gestos e a paz das mãos que se dão às minhas
Cruzando desejos maduros
Que fazem, ainda e sempre, estremecer as borboletas dentro do meu peito.

Vem ter comigo
E não te esqueças de trazer um vaso de água
Que deitarás sobre a terra do jardim, ao fim do dia, todos os dias.


Inverno




Foi no tempo invernoso das celebrações
Brilhavam luzes nas montras quando em mim se acendeu a chama das certezas.
E foi na sombra de um desassossego enraivecido
Que estilhacei contra o chão os vidros
Afogando-me depois no sangue de uma ferida aberta.
Mutilada.

Abriguei-me da vida na sombra ácida do estar simplesmente aqui
E sucumbi.
Nem as aves me encontraram para me debicarem as vísceras.

E no entanto havia as tuas mãos marcadas
Num resto de vida que me confundia os dias e as noites.
Como se um vento tivesse varrido a lucidez
E sobrasse apenas o pranto.
E o espanto.

Um muro alto vedou-me a luz
E o labirinto confundiu-me, numa solidão desconcertada.
Mutilada.
Sobrevivi, sonâmbula, nas fissuras de uma promessa de eternidade
E tombei exausta na parte de trás dos poemas repetidos
Coberta de geada e sem sentidos.


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

As palavras e as mãos








Lembro-me sempre dos dias em que vinhas carregado de palavras
E eu te ouvia pela madrugada
Era como se fosses barco e trouxesses contigo o vento
Ou os salpicos de espuma sobre a promessa do tempo eterno
Pousava o braço no calor da tua pele e acreditava
Que a viagem seria longa.

Lembro-me também das borboletas no jardim
Ou do aroma da relva acabada de cortar.

Se abrir as gavetas encontro ainda as imagens
Guardei-as ordenadamente
Para não ter de encadear o tempo dentro dos olhos;
Mas isso é nos dias em que me sento ao lado da memória 
E dou comigo a questionar todas as razões.
Agora, sem mapa que me leve ao rumo inicial
É nas minhas mãos que leio a geografia alternativa.



terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

fragmentação






Fui tecida num tear de madeira crua e depois enformada num invólucro de numeração errada, um número abaixo das minhas dimensões. Cheguei ao mundo apertada.
Cresci com vontade de saber o que estava para além do fim da rua mas tive sempre medo de atravessar a floresta e descobri-la desencantada. Nasci incrédula.
Compus-me de timidez, fio a fio, linha tecida e retorcida numa mente insatisfeita mas contida; devo ter crescido encarcerada.
Aos poucos fui vestindo tecido acetinado, enfadada de tanto me encerrar na pequenez herdada. Pequenos complementos em fios de seda, escondidos, sentidos, vistos; e depois o gosto de me sentir recompensada.
Sorri quem sabe ser desejada. Investe quem tem um espelho grande e tece nele linhas cruzadas, desenleadas pela sublime sensação de ser amada.

Não sei se é problema deste espelho, ou se sou eu que me vejo numa imagem desfocada, mas os fios com que me visto agora são estas linhas quebradas, fios enleados, emaranhados, mal acabados …
Onde está a parte que me falta, as partes que me compõem: o corpo, as pernas, a cintura antes tão bem desenhada, as minhas mãos engenhosas e a saia fantasiada?
Não, não me digas que é uma tristeza inventada. É que a casa está vazia, tudo agora é um espelho descomposto, ou são os olhos que o quebraram e eu estou nele assim fragmentada.