quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

As palavras e as mãos








Lembro-me sempre dos dias em que vinhas carregado de palavras
E eu te ouvia pela madrugada
Era como se fosses barco e trouxesses contigo o vento
Ou os salpicos de espuma sobre a promessa do tempo eterno
Pousava o braço no calor da tua pele e acreditava
Que a viagem seria longa.

Lembro-me também das borboletas no jardim
Ou do aroma da relva acabada de cortar.

Se abrir as gavetas encontro ainda as imagens
Guardei-as ordenadamente
Para não ter de encadear o tempo dentro dos olhos;
Mas isso é nos dias em que me sento ao lado da memória 
E dou comigo a questionar todas as razões.
Agora, sem mapa que me leve ao rumo inicial
É nas minhas mãos que leio a geografia alternativa.



terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

fragmentação






Fui tecida num tear de madeira crua e depois enformada num invólucro de numeração errada, um número abaixo das minhas dimensões. Cheguei ao mundo apertada.
Cresci com vontade de saber o que estava para além do fim da rua mas tive sempre medo de atravessar a floresta e descobri-la desencantada. Nasci incrédula.
Compus-me de timidez, fio a fio, linha tecida e retorcida numa mente insatisfeita mas contida; devo ter crescido encarcerada.
Aos poucos fui vestindo tecido acetinado, enfadada de tanto me encerrar na pequenez herdada. Pequenos complementos em fios de seda, escondidos, sentidos, vistos; e depois o gosto de me sentir recompensada.
Sorri quem sabe ser desejada. Investe quem tem um espelho grande e tece nele linhas cruzadas, desenleadas pela sublime sensação de ser amada.

Não sei se é problema deste espelho, ou se sou eu que me vejo numa imagem desfocada, mas os fios com que me visto agora são estas linhas quebradas, fios enleados, emaranhados, mal acabados …
Onde está a parte que me falta, as partes que me compõem: o corpo, as pernas, a cintura antes tão bem desenhada, as minhas mãos engenhosas e a saia fantasiada?
Não, não me digas que é uma tristeza inventada. É que a casa está vazia, tudo agora é um espelho descomposto, ou são os olhos que o quebraram e eu estou nele assim fragmentada.




segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

esperando






Já de madrugada vieram os pássaros em chilreios de despertar
Enquanto o sol se levantava e os olhos estranhavam a luz.
Só lhes ouvi o bater das asas;
Estava distraída a plantar uma tília
Com os dedos envolvidos no prazer da terra
E os sentidos todos concentrados na esperança de a ver crescer.
Para lá da porta via-se o verão incendiando a planície
Lume a fustigar a calma, fogo, ânsia.
Ouvi depois dizer que é devagar que as folhas desabrocham
Embora o desejo se converta em pressa
E queira desvendar os labirintos.







sábado, 16 de fevereiro de 2013

o fim da escrita








Demoro-me nas linhas das palavras e as letras secam.

Demoram-se-me os gestos, mais do que seria de esperar, na dimensão dos verdes e nos espectros que os enleiam.

Ignoro os nomes das coisas e o texto enrola-se.

Enrolam-se as emoções; e a espuma dos sonhos, macilenta, térrea, despida de substância, petrifica.
 
Os ângulos dos dedos ferem a coragem; não há paz nem no recolhimento. 

Roça a dor na demora dos gestos; fio de meada enleada, larva em casulo seco, veludo desbotado. Pedra.

Inquieta-se a lucidez, fermenta o rasgão no espelho, perde-se a semântica dos sentidos.

Escrever para quem se só a leitura dos amores bem sucedidos é fértil.








sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Dias sem flores




Não me dêem flores enlaçadas ou por enlaçar.
As flores envelhecem em jarras depois do momento em que deveriam aquecer as mãos.

Antes não as ter …

Prefiro a realidade das palavras, a ternura colada à voz, a sílaba na frase espontânea, o gemido abraçado ao frio da madrugada, a banalidade suavizada nos ouvidos, o murmúrio soprado sobre a luz de uma vela, ou o dizer acenado no instante da partida.
Não há flores que preencham os espaços gelados do silêncio.





domingo, 10 de fevereiro de 2013

antes da floração








Sabias, se me escutasses, que aguardo o verão com a ansiedade do guerreiro na hora da batalha ou o desassossego da adolescente antes do grande encontro; como se tivesse estado de joelhos, durante toda a noite, atenta ao murmúrio do oráculo e fosse agora o momento de desvendar o enigma.



Sabias, se me adivinhasses, de uma existência mais do que escrita nas folhas de um caderno ou de um palavrear de insatisfação em linhas curvas; como se as palavras fossem eu e quisessem vida depois de anos amarradas aos cabelos da esfinge, exposto agora o desejo à nudez do amanhecer.



Sabias, se me visses, da força dos rebentos em vésperas da floração, ou da energia de uma estrela mal pousada no espaço, a querer abraçar a terra; como se o romance não tivesse ainda começado mas o seu halo já pairasse por cima da pose inquieta e do fogo a arder nos lábios.




Folhas de outono




Não é por não te ter… é mais pelo castanho-velho das folhas que o vento empurra pelas ruas e pelo calor húmido que o ar carrega entre portas, onde o sossego exagera de tanto ser por fora e a inquietação por dentro.

Não é por não te ter… é mais pela crueldade diária do vazio dentro da masmorra sem janelas; pelo pó que se acumula na parte de cima dos livros fechados; pela marca dos passos no mármore do chão; pela tinta que se vai gastando de tanto esconder o branco dos cabelos.

Não é por não te ter… pois ter-te seria um excesso, a todas as horas, no desassossego da invenção das noites mal dormidas.

Não é por isso, não. É pelo espaço reproduzido no vazio, pelas horas que o relógio multiplica, pela constância do silêncio a prolongar-se na mesma direcção, pelo sentido obtuso da conversa unilateral, pela música sem eco no canto da sala, pelo excesso de sossego em vez da festa, pelo desejo mal arrumado no canteiro adiado da sementeira, pelos laços quase desfeitos de tanto enrolar o inexplicável, pelas palavras que ditas, outrora, seriam ouro e escritas, agora, ganham um peso inútil.

Não é por isso, não. Ter-te, à distância, seria ainda esperar a ternura do carinho preso aos dedos e a esperança de não definhar calada.




quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

À procura do regaço








Já se inclina para mim a melodia

embora o lastro pese ainda, trágico, incómodo, flagelante
e as palavras tenham chuva sobre as sílabas.
dizem os poetas que as águas cantam os amores e correm calmas
mas nem sempre as janelas se abrem sobre os jardins;
às vezes o verso é demasiado profundo e cava;
a própria natureza grita e as pedras rugem
a lembrar que abaixo há ainda a humana condição
e só depois a madrugada;
ou o uivo das folhas que o vento arrasta antes de derrubar as pontes
e só depois o regaço onde se curam as feridas.